Integrando fronteiras no cuidado com o trauma - VIII Congresso Brasileiro de EMDR
- Ivana Siqueira

- há 5 dias
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Reflexões a partir do VIII Congresso Brasileiro de EMDR e II Congresso da Alianza Latino América y Caribe - Parte 1

Participar do VIII Congresso Brasileiro de EMDR e do II Congresso da Alianza Latino América y Caribe está sendo, acima de tudo, uma experiência de integração: entre ciência e clínica, entre técnica e vínculo, entre diferentes culturas e formas de compreender o sofrimento humano. O tema "Integrando Fronteiras" não se apresentou apenas como um slogan, mas como uma proposta ética e epistemológica que atravessou as mesas, os debates e as experiências compartilhadas.
Nesta primeira parte, compartilho algumas reflexões centrais a partir dos conteúdos que vêm atravessando minha escuta clínica. Este texto integra todo o material apresentado até o momento no congresso, incluindo as contribuições sobre escolhas clínicas no EMDR (pré-congresso), trabalho com trauma complexo e partes, além das articulações com neurociência, integração técnica e fundamentos teóricos discutidos nas mesas assistidas.
Pinceladas sobre as palestras e eixos apresentados até aqui no Congresso Brasileiro de EMDR
Sem perder a profundidade do que vem sendo discutido, este primeiro momento do congresso também traz algumas linhas que merecem ser brevemente destacadas:
Roger Solomon - Escolhas na Terapia EMDR (pré-congresso): ênfase na tomada de decisão clínica em tempo real, no ajuste fino do ritmo do processamento, na importância de manter o paciente dentro da janela de tolerância e na compreensão do EMDR como uma prática relacional, responsiva e profundamente sensível à resposta do cliente.
Integração entre Neuromodulação por tDCS & EMDR - Sérgio Fonseca: apresentação de um campo emergente que articula EMDR e neuromodulação não invasiva, sugerindo que a modulação da excitabilidade cortical pode favorecer maior plasticidade, facilitar o acesso às redes de memória e potencializar a regulação emocional, especialmente em casos de TEPT, depressão resistente e dor crônica.
Do Reprocessamento à Reestruturação: EMDR integrada à Terapia dos Esquemas - Sérgio Fonseca: destaque para a complementaridade entre o reprocessamento de memórias traumáticas e a reorganização de esquemas iniciais desadaptativos, ampliando a possibilidade de transformação de padrões emocionais arraigados e fortalecendo o desenvolvimento do Adulto Saudável.
Aplicação de jogo na hipótese sistêmica em intervenção breve EMDR para ansiedade - Dra. Tina Zampieri: uso de recursos lúdicos e da teoria sistêmica como mediadores para compreensão relacional da ansiedade, enfatizando a diferenciação do self e a leitura do sintoma dentro das dinâmicas familiares.
EMDR, Neurociência e Interculturalidade - Ana Paula Silva: ampliação do olhar para o trauma migratório e transcultural, destacando os impactos neurobiológicos, identitários e relacionais da experiência de deslocamento, bem como a importância de uma clínica sensível à história, linguagem e pertencimento do sujeito.
Essas contribuições, ainda que brevemente apontadas aqui, revelam a riqueza e a diversidade de perspectivas que vêm atravessando este congresso, reforçando a ideia de que integrar fronteiras é também integrar corpo, memória, cultura, vínculo e ciência no cuidado com o trauma.
EMDR como prática viva: escolhas que se fazem na relação
Um dos pontos mais consistentes discutidos no pré-congresso, especialmente na apresentação de Roger Solomon, foi o entendimento do EMDR não como um protocolo rígido, mas como uma prática profundamente responsiva. A cada sessão, o terapeuta é chamado a fazer escolhas contínuas, guiadas não apenas pelo protocolo, mas pela resposta singular do paciente.
A seleção do alvo, o ritmo do estímulo bilateral, o tamanho das séries, o momento de intervir ou silenciar, a decisão de avançar ou retornar à estabilização, tudo isso requer uma escuta refinada, sensível ao que se manifesta no corpo, na narrativa e na postura do paciente. A janela de tolerância deixa de ser um conceito abstrato e passa a ser um guia ético-clínico fundamental, orientando o quanto o paciente consegue sustentar de contato com a memória sem se desorganizar ou se desconectar.
Nesse sentido, é o monitoramento contínuo que orienta o processo: expressões faciais, respiração, postura corporal, capacidade de manter a atenção dual e presença no aqui-agora. Não se trata de conduzir o paciente, mas de acompanhar o fluxo de processamento respeitando seus limites e seus tempos.
Preparação e capacidade integrativa: o que sustenta o reprocessamento
Outro aspecto amplamente enfatizado foi a importância da fase de preparação e da avaliação da capacidade integrativa. Antes de trabalhar diretamente com memórias traumáticas, é necessário que o paciente disponha de recursos mínimos de regulação, co-consciência entre partes e habilidade de se manter em um estado de segurança subjetiva.
Isso inclui:
capacidade de diminuir a ativação fisiológica
acesso a recursos internos
atenção dual
percepção e tolerância das sensações corporais
estabilidade mínima no ambiente externo
possibilidade de refletir sobre o que está acontecendo
A ideia de "bom o suficiente" aparece de forma ética: não se trata de esperar uma estabilidade idealizada, mas de reconhecer se há base psíquica para que o processamento ocorra sem riscos de retraumatização.
Trauma complexo e trabalho com partes
O congresso também ampliou a compreensão sobre o trabalho com trauma complexo e sintomas dissociativos, reforçando a visão das partes como redes de memória com identidade própria, cada uma com sua lógica de proteção e sobrevivência.
Trabalhar com partes exige uma postura de acolhimento e respeito:
compreender a função protetiva de cada parte
legitimar sua existência
desenvolver compaixão do adulto presente em relação às partes emocionais
favorecer cooperação interna
fortalecer a liderança do Adulto Saudável
Uma ideia potente foi a de que nada que ocorre durante o processamento é aleatório: quando uma parte se ativa, ela está tentando proteger o sistema. O papel do terapeuta não é combatê-la, mas compreender sua função, oferecer segurança e construir possibilidades de diálogo interno.
Quando intervir e quando silenciar
Um dos aspectos mais delicados da condução do EMDR está em reconhecer o momento de intervir. Há situações em que o terapeuta precisa entrar mais ativamente, quando o paciente está bloqueado, fora da janela, com dissociação intensa ou processamento interrompido. Em outros momentos, o silêncio terapêutico é mais potente, permitindo que o próprio paciente avance em seu processo interno.
A ideia apresentada é clara: o terapeuta não deve competir com o processo do paciente, mas acompanhá-lo. A escuta clínica se torna mais importante que qualquer técnica sofisticada.
A contenção relacional como base do reprocessamento
Talvez um dos pontos mais sensíveis e potentes que vêm sendo abordados é o reconhecimento de que o relacionamento terapêutico é o verdadeiro veículo do processo. A janela de tolerância do terapeuta se conecta à do paciente, oferecendo sustentação emocional em momentos de intensa ativação.
É nesse vínculo que se constrói, no presente, uma experiência de segurança que não foi possível no passado. O EMDR não se restringe ao movimento bilateral: ele acontece na relação, na presença, na estabilidade oferecida pelo terapeuta.
Considerações finais desta primeira parte
O congresso reafirma algo que considero essencial na prática clínica: o EMDR é uma abordagem que exige sensibilidade, ética e profundo respeito pela singularidade do paciente. Integrar fronteiras é reconhecer que o cuidado com o trauma não se dá apenas no nível da técnica, mas na construção de um espaço relacional seguro onde o sofrimento pode, gradualmente, se reorganizar.
Na próxima parte, abordarei as integrações apresentadas entre EMDR e neurociência, Terapia dos Esquemas e outras fronteiras contemporâneas que ampliam a compreensão do trauma e suas possibilidades de cuidado. Ivana Siqueira
CRP 05/40028
Terapeuta EMDR



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